Qual é o papel do Governo diante da violência e de marginais, segundo João Calvino
Considerando os últimos acontecimentos no estado do Rio de Janeiro, no que diz respeito à violência praticada por marginais e ao enfrentamento da Polícia no cumprimento de sua missão de coibir crimes e executar mandados de prisão – ocasião em que, nessa guerra, houve a morte de 121 civis e 4 policiais –, é importante trazer à tona bons e lúcidos escritos sobre a relação entre marginais e polícia. Todavia, não é raro, mas frequente, ouvirmos pessoas emitindo opiniões sobre o ocorrido, muitas vezes carregadas de emoção, desinformação e até de mentiras.
Sendo assim, transcrevo abaixo parte do excelente texto do Reformador João Calvino, extraído do Livro IV, Capítulo XX de suas Institutas, intitulado “Do Governo Civil”. Nele, pode-se perceber a lucidez e a concatenação de Calvino ao tratar da ação do governo e de suas bases bíblicas, demonstrando como o governo e a autoridade civil devem agir diante da violência, buscando sempre a manutenção da paz social.
Segue abaixo o escrito de Calvino.
"“Do Governo Civil”
Institutas, Livro IV, Capítulo XX"
O Dilema Moral dos Magistrados e a Lei de Deus
Mas aqui, aparentemente, coloca-se uma questão difícil e perturbadora. Se a Lei de Deus (Ex 20,13; Dt 5,17; Mt 5,21) proíbe todos os cristãos de matar, e se o profeta (Is 11,9; 65,25) vaticina que eles nem farão mal algum nem matarão ninguém no santo monte de Deus (a Igreja, em outras palavras), como podem os magistrados ser ao mesmo tempo cumpridores de seus deveres para com Deus e derramar sangue? Se compreendermos, porém, que, quando os magistrados infligem uma punição, não se trata de um ato deles mesmos, mas apenas da execução dos [próprios] juízos de Deus, não seremos inibidos por nenhum escrúpulo a esse respeito. A Lei de Deus proíbe matar. Todavia, para que os assassinos não escapem sem punição, o próprio legislador coloca a espada nas mãos de seus ministros, para ser usada contra todos os assassinos. Fazer mal e matar não são as ações de homens devotos, mas vingar, por ordem de Deus, os tormentos que recaem sobre os devotos não significa “fazer mal ou matar”
A Autoridade Divina dos Magistrados
Se ao menos esta consideração estivesse sempre presente em nossas mentes: na punição, nada é feito pela presunção humana, mas por ordem e autoridade de Deus. E, quando esta vem em primeiro lugar, jamais há desvio do caminho correto. A menos que talvez a justiça divina deva ser refreada, de modo que a impeça de punir crimes. E, se não é admissível a imposição de uma lei a Deus, por que injuriamos seus ministros? Eles não trazem debalde a espada, diz São Paulo (Rm 13,4), porque são ministros de Deus, para executarem sua ira e levarem a vingança ao que faz o mal. Portanto, se os príncipes e outros superiores souberem que não existe nada mais agradável ao Senhor do que sua obediência, que não poupem esforços em exercer este ministério, caso tenham efetivamente algum desejo de agradar a Deus por sua devoção, obediência e justiça.
Exemplos Bíblicos: Moisés e Davi
Foi certamente esse desejo que impeliu Moisés quando ele matou o egípcio, sabendo-se destinado pelo poder de Deus a ser o libertador de seu povo (Ex 2,12); e também quando ele abateu três mil pessoas em um só dia, para punir a idolatria do povo (32,27). E foi o mesmo desejo que moveu Davi, quando, no fim de sua vida, ordenou que seu filho Salomão matasse Joab e Semei (1Rs 2,5). Esse também é o motivo pelo qual ele menciona (Sl 101,8) entre as virtudes reais “a destruição dos iníquos da terra”, para que todos os que fazem o mal pudessem ser eliminados da cidade de Deus.
A Justiça Real e o Louvor a Salomão
Aqui também cabe o louvor que é concedido a Salomão (Sl 45,7): “Tu amas a justiça e aborreces a impiedade.” Como foi possível que Moisés, normalmente de uma índole gentil e pacífica, alcançasse um tal paroxismo de crueldade a ponto de correr pelo acampamento ansioso por ainda mais mortes, quando ele já estava salpicado e pingando com o sangue de seus irmãos? Como foi possível que Davi, um homem de grande suavidade durante sua vida inteira, tivesse essa última vontade e esse testamento sequioso de sangue como seu último alento: que seu filho não deveria permitir que Joab e Semei fossem com os cabelos brancos e em paz para seus túmulos (1Rs 2,3; 6,8)? A selvageria (se é que efetivamente deve ser chamada assim) tanto de Moisés quanto de Davi santificou aquelas mãos que eles teriam profanado pela piedade, pois era a vingança que Deus lhes havia ordenado que eles estavam executando. “Abominação é para os reis o praticarem a impiedade”, diz Salomão (Pr 16,12), “porque com justiça se estabelece o trono.” E também (20,8): “Assentando-se o rei no trono do juízo, com seus olhos dissipa todo o mal” (isto é, para puni-los).
A Espada dos Reis e a Justiça de Deus
Ainda (20,26): “O rei sábio dissipa os injustos e faz girar sobre eles [isto é, os quebrará a roda”; e (25,4-5): “Tira da prata as escórias, e sairá vaso para o fundidor; tira o injusto da presença do rei, e seu trono se firmará na justiça.” E ainda (17,15): “O que justifica o injusto, e o que condena o justo, abomináveis são para o Senhor, tanto um como o outro.” E (17,11): “Na verdade o rebelde não busca senão o mal, mas mensageiro cruel se enviará contra ele.” (24,24): “O que disser ao injusto, justo és, os povos o amaldiçoarão, as nações o detestarão.” Por conseguinte, a verdadeira justiça [dos governantes] consiste em perseguir aqueles que praticam o mal e os injustos com a espada em riste. Se [os governantes] embainharem sua espada e conservarem suas mãos limpas de sangue, enquanto os iníquos vagam pela região massacrando e matando, em vez de receberem louvores por sua bondade e justiça, [os governantes] tornam-se culpados da maior injustiça possível.
A Necessidade de Clemência e Moderação
Que não haja, porém, uma severidade ditatorial e selvagem, não a espécie de tribunal que foi chamada, com razão, de “a rocha na qual os acusados afundam”. Isso porque não sou daqueles que são favoráveis a uma selvageria insaciável, nem penso que um veredicto justo possa jamais ser proferido a menos que a clemência esteja sempre em serviço, aquela “melhor conselheira e mais seguro sustentáculo dos tronos reais”, como diz Salomão (Pr 20,28). Alguém certa vez a chamou com razão de a maior virtude dos príncipes. Todavia, o magistrado deve precaver-se para não causar mais dano do que melhoria, devido à severidade excessiva, e tampouco degenerar na mais cruel “humanidade”, permitindo a si mesmo, mediante uma fixação supersticiosa na clemência, ser debilitado até uma indulgência frouxa e dissoluta, para a perdição de muitos. Pois foi oportunamente observado por alguém (quando Nerva era imperador) que é ruim viver sob um príncipe que não permite coisa alguma, porém muito pior é viver sob aquele que tudo permite.
A Legitimidade da Guerra Justa
De tempos em tempos, é necessário que os reis e os povos peguem em armas para executar essa espécie de vingança pública. E nossa discussão anterior também nos permite concluir que as guerras travadas com essa finalidade são legítimas. Isso porque, se foi conferido aos reis e aos povos o poder de garantir a tranquilidade em seus territórios, de reprimir os levantes sediciosos fomentados por homens rebeldes, de ajudar os oprimidos pela violência e de adotar medidas contra os maus, que melhor ocasião poderia existir para o emprego desse poder do que a de subjugar a fúria de alguém que perturba a paz e a tranquilidade não apenas de indivíduos particulares, mas de comunidades inteiras?
O Dever dos Reis e dos Povos
Alguém que fomenta a sedição e comete atos de violência e opressão e outros ultrajes? Se é dever [dos reis e dos povos] agir como guardiães e paladinos das leis, eles também devem fazer todos os esforços para frustrar os projetos daqueles cujos crimes solapam a disciplina das leis. Além disso, se eles estão certos em punir criminosos cujos malefícios atingem apenas a alguns poucos, deveriam deixar ilesa a criminalidade que atormenta e flagela toda uma região? Não tem importância, nesse caso, se é um rei ou o mais vil integrante de uma horda que invade uma região estrangeira, sobre a qual ele não tem jurisdição, para matar e saquear, todos eles devem ser considerados criminosos e punidos como tais.
A Guerra e a Defesa Legítima
A justiça natural e seu ofício exigem igualmente que os príncipes devam estar armados (usem a espada) não apenas para reprimir delitos particulares por meio de penas judiciais, mas também para defender, mediante a guerra, os territórios a eles atribuídos em confiança, quando estes são invadidos por inimigos. E guerras dessa espécie o Espírito Santo declara legítimas, segundo o testemunho de muitas passagens das Escrituras.
O Testemunho do Novo Testamento
Se aqui alguém objetar que, no Novo Testamento, não existe texto de comprovação ou exemplo que mostre que a guerra é permissível aos cristãos, minha resposta será a seguinte: em primeiro lugar, as razões para travar a guerra que existiam antes ainda existem atualmente. Ao contrário, não há nada que impeça um magistrado de defender seus súditos. Mais ainda, não nos cabe buscar uma discussão explícita de assuntos dessa natureza nos escritos apostólicos (doutrina); o propósito destes é dar lições sobre o reino espiritual de Cristo, não moldar uma política de governo. Seja como for, as Escrituras efetivamente oferecem de passagem evidências no sentido de que Cristo, pela sua vinda, não alterou nada a esse respeito. Pois, se o ensinamento cristão (para usar o termo de Agostinho) condenasse todas as guerras, teria sido dito aos soldados que buscaram conselho acerca da salvação que lançassem fora suas armas e abandonassem imediatamente o exército. O que de fato lhes disseram, porém, foi: “A ninguém molesteis com violência ou injustiça e contentai-vos com vosso soldo” (Lc 3,14). Se Cristo lhes ordenou que se satisfizessem com o pagamento de soldado, [evidentemente] não os estava proibindo de lutar como soldados.
A Moderação e a Responsabilidade dos Magistrados
Todos os magistrados, porém, devem tomar todas as precauções para não ceder, ainda que pouco, a suas paixões; se lhes couber infligir penalidades, não devem se deixar arrebatar pelo furor, pelo ódio, ou pela severidade implacável, mas antes ter compaixão de nossa natureza [humana] comum, como diz Agostinho, mesmo naqueles cujos crimes eles punem. E, ainda que as armas devam efetivamente [por vezes] ser empunhadas contra um inimigo, isto é, um criminoso armado, [os magistrados] não devem se aproveitar de toda e qualquer oportunidade fortuita: ainda que uma ocasião se apresente, dela não devem utilizar-se a menos que obrigados por uma necessidade que não admite escapatória.
A Finalidade da Guerra e o Bem Público
Pois muito mais se exige dos cristãos do que era requerido dos pagãos que desejavam que a guerra fosse uma busca da paz; tudo o mais precisa ser tentado antes de se recorrer às armas. E nas duas espécies de atividade [a guerra e a punição de criminosos] os magistrados não devem se deixar empolgar por nenhuma paixão de ordem pessoal, porém ser guiados exclusivamente por uma preocupação pelo bem público. Fazer qualquer outra coisa representa o pior abuso de sua autoridade, que lhes é dada para o benefício e o serviço de outros, e não deles próprios.
Da Legitimidade das Guarnições e Alianças
Pela mesma razão, empreender a guerra também depende da legitimidade das guarnições, alianças e outros dispositivos militares. Chamo “guarnições” à disposição dos soldados em diversas cidades para proteger as fronteiras de uma região; “alianças”, àqueles [tratados] que são feitos entre príncipes vizinhos para assistência mútua contra distúrbios em seus territórios e como meio de unir forças para a supressão dos inimigos comuns da raça humana; e “dispositivos militares”, a qualquer coisa que seja usada na arte da guerra.
FONTE: Institutas da Religião Cristã, Livro IV, Capítulo XX
Títulos similares: João Calvino, Institutas da Religião, Governo Civil, Governo Civil, Violência, Polícia, Mal